Adriane Galisteu comemora o sucesso da campanha A Cara da Vida, que em 24 horas arrecadou R$ 300 mil em doações para as vítimas da Aids, e conta pela primeira vez a experiência da perda do irmão, morto pelo HIV há 13 anos.
A cabeleira loura voava no meio dos carros na rua Oscar Freire, nos Jardins, em São Paulo. Era Adriane Galisteu parando o trânsito. Isso não seria lá uma novidade para a apresentadora da Band não fosse seu esforço concentrado para vender, em 24 horas, 5.200 camisetas como doação às vítimas da Aids, internadas no Instituto de Infectologia Emílio Ribas. E ela conseguiu. A campanha A Cara da Vida, avalizada pelo prefeito Gilberto Kassab e pelo infectologista David Uip, diretor-geral do Emílio Ribas, foi criada por Adriane e pelo empresário Alexandre Iódice, seu namorado, com o objetivo de fazer barulho. Mais do que ajudar financeiramente na qualidade de vida dos pacientes do Emílio Ribas, a ideia foi mostrar engajamento e alertar: a doença permanece mortal e a prevenção ainda é a única saída. No sábado 5, as lembranças de Adriane estavam voltadas para o irmão, Alberto Galisteu Filho, o Beto, que morreu em consequência do HIV, aos 28 anos, em 1996.
Que balanço faria desta campanha?
Foi um dia feliz e um trabalho árduo. Comecei a vender camisetas às 10h e fui até às três horas da manhã, na boate Pink Elephant. Nem entrei. Os donos arremataram por R$ 200. Essa é uma ação pessoal, que eu senti na pele a dor. Não que a campanha seja mais importante do que outras, mas a vontade de fazer nasceu de mim. Fizemos um movimento lindo. Quem passou pelos Jardins não saiu ileso.
Pensou muito no seu irmão?
O tempo inteiro. Toda camiseta que vendia, era nele que eu pensava. Era para ele. (Adriane se emociona). Toda vez que contava da campanha para alguém que não sabia do que se tratava, contava minha história.
O que contava?
A verdade. Que estava arrecadando fundos para o Emílio Ribas. Não vou salvar a vida de ninguém, infelizmente. Esse projeto tem a cara da vida, mas a Aids ainda é a cara da morte. Perdi meu irmão em 1996. Soubemos da doença dele três meses após a morte do Ayrton (Senna). Tive que ficar bem calada porque naquela época isso significava perder as pessoas para dar a mão para você. As pessoas tinham medo de pegar na mão de quem tinha Aids. Uma época em que a ignorância bombava. Não tinha informação nem internet. Segurei aquela onda quieta. Beto era heterossexual convicto, mas drogado. Hoje, 13 anos depois, tem muita gente em estado terminal internada no Emílio Ribas. Gente que quero ajudar. Quero que tenham um fim de vida com qualidade. Quero comprar colchões, pintar quarto, colocar ar-condicionado.
Do que mais se lembrava do seu irmão?
Pensava em tudo que não pude fazer naquela época, quando nem havia um remedinho para tomar. O que não pude fazer estou fazendo agora. Me esforcei fisicamente, fiquei morta, quase 24 horas trabalhando nisso. Não comi. Minha mãe também não. Olhava para ela e falava: "Pelo amor de Deus, mãe, a senhora pode dormir, pode comer". Ela ficou comigo.
Como estava a emoção dela?
Às vezes olhava e via a dona Emma branca. Ela estava muito emocionada. Mas tive três grandes momentos no dia da campanha. O primeiro foi um soropositivo que foi até lá. Ele estava internado no Emílio Ribas e só saiu do hospital para fazer a doação dele. Chorei muito. Outro momento: um gari quis comprar a camiseta. E também um pedinte paraplégico. Ele foi até lá, com o dinheiro que arrecadou na semana, pedindo na rua, para comprar a camiseta (R$49,90). Não deixei. Peguei o dinheiro com a minha mãe, comprei a camiseta e vesti nele. Fora a emoção de ver os amigos, de ver o prefeito Kassab fazendo a doação dele. O Marcus Elias, presidente da Parmalat, comprou 400 camisetas. O maior cheque que recebi veio do Haysam Ali, que vai abrir a boate Velvet Club: R$ 75 mil. Comprou 1.500 camisetas. O Nelson, da Vivara foi um espetáculo, tanto que fui levar uma caixa lá na loja. Tive uma experiência linda, mas no ano que vem vamos ficar mais organizados. Foi desgastante fisicamente, mas sabe um cansaço que te deixa feliz?
Esta campanha ajuda na prevenção da Aids?
Isso é o principal. Na campanha do governo, o mote este ano é: 'Viver com Aids é possível? É. Com preconceito, não.' Concordo. Mas é mais do que isso. Os números se estabilizaram, mas nos antigos grupos de risco: gays e as prostitutas. Agora onde os números estão extrapolando? Entre jovens de 13 a 19 anos e pessoas acima de 60 anos, heterossexuais. Esse é hoje o grupo de risco. Nós somos grupo de risco. A gente não está levando a sério. Quero fazer barulho no Congresso e pedir para que a camisinha entre na cesta básica. Pedi apoio para a Marta Suplicy. Queria falar com o Lula. Vai sair mais barato para o governo. Eles ficam com camisinhas vencidas nos postos de saúde. As pessoas não vão buscar.
"Dez minutos antes de morrer, Beto me pediu: nunca experimente drogas, porque você pode gostar. Isso ninguém fala nas campanhas"
Pode contar o que seu irmão pediu antes de morrer?
Dez minutos antes de morrer, ele me pediu: "Pelo amor de Deus, em nome de tudo, não experimente drogas, porque você pode gostar". Isso ninguém fala nas campanhas. Tudo que é proibido tem seu lado bom. Ele mal podia falar, estava com um problema grave nos pulmões. Foi horrível. Queria que as pessoas soubessem disso. Contei isso para o David Uip. Ele falou que nunca tinha pensado nesse discurso: as pessoas podem gostar da droga e não gostar da camisinha. Não adianta dizer que droga é ruim. Quem usa droga não acha. Só que vão morrer, é uma questão de tempo. Vão se destruir e destruir a família. Não é só questão da Aids. Assim como o uso da camisinha não estou falando só da Aids. Tem sífilis, HPV, gonorreia, que são doenças que já tinham que estar extintas e não estão. Entrevistei umas meninas bonitas, pareciam ricas, saindo de um carro lindo para fazer a colaboração e perguntei: me deem uma resposta honesta: vocês usam camisinha? Elas começaram a rir e saíram correndo.
As mães sempre se culpam. Sua mãe se culpa?
Não sou mãe e me culpo por não tê-lo deixado vivo mais um pouco. Se ele tivesse durado mais cinco meses, teria tido a chance de tomar pelo menos um AZT. Imagina minha mãe. Mas ela se culpa por ele ter começado a usar drogas. Ele era bom aluno, só tirava notas altas. Minha mãe foi espetacular, foi criada para ser mãe. Nunca trabalhou, viveu para os filhos, fazia lição de casa com meu irmão, dava comida na boca da gente. Ele já tinha 18 anos ela ia lá e fazia ele comer. É aí que vem a culpa: por que ele fez essa opção? Ela nunca entendeu isso. Antes de morrer, Beto também pediu que avisasse a mamãe: "Foi a minha opção. Ela foi uma grande mãe. Ela não tem culpa nenhuma". Minha mãe não acredita nisso, o que lamento até hoje. Mas ele me disse isso morrendo. Ajoelhei no pé da cama e rezei junto com ele. Ela acha que falo isso para aliviar a dor dela. Jamais brincaria com as palavras do meu irmão. Uma coisa que levo muito à serio é a dor das pessoas, o amor das pessoas e a verdade. Naquele momento minha dor era tão grande que eu jamais conseguiria fazer uma coisa dessas para aliviar. Jamais.
Para ela, essa perda deve ter sido ontem.
Foi ontem. Ela vai ao cemitério de manhã todo dia, levar flores. Só não faz isso quando viajamos. É habito, como acordar e escovar os dentes. Mas acho que consegui muitas coisas, como fazê-la sobreviver. Consegui trazê-la para perto de mim. Tinha certeza que ela não ia sobreviver. Ela não falava, ficou muda. Era mais magra que eu. Mas ela entendeu que eu precisava dela. Tanto que só fui chorar a perda do meu irmão tempos depois, porque tinha tanto medo de chorar na frente dela, que fingia não estar sentindo nada. Depois fiz terapia porque comecei a sentir muita falta dele e do meu pai. Hoje, é uma troca: quando ela me vê mal, me põe no carro, me leva até a Lapa, onde morávamos. É uma forma de me deixar com os pés no chão. Se tem uma coisa que não posso é reclamar da vida.
Quando criou essa campanha, pensou nela?
Muito. Não faria se ela não me liberasse. Ela já acha que tenho uma megaexposição.E talvez meu irmão não quisesse ser tão exposto. Mas para uma causa dessas, se estivesse vivo, acho que ele estaria vestindo a camiseta e vendendo também. Poderia ter feito isso antes, mas ela nunca deixou. E em respeito a ela, nunca fiz. Mas o nome A Cara da Vida quem deu foi o Alexandre. E eu falei: puxa, vamos fazer? Minha mãe estava num dia muito tranquilo e topou. Foi um movimento abraçado por gente especial. Não peguei nada pronto, mas tive voluntários incríveis, não só famosos, mas amigos, empresas. Fiquei emocionada. Agradeço ao Nelson Sacho, meu assessor, minha equipe, ao Marco Antônio de Biaggi. Piny Montoro e Danilo Faro ficaram comigo até três da manhã. Fora os paulistanos, as rádios. Não parei a campanha e quero entregar ao David Uip R$ 500 mil em 10 de janeiro. Mas a questão não é o dinheiro. A questão é a postura. Uso minha imagem para mexer com as pessoas, fazê-las pensar sobre essa doença e terem medo mais uma vez. Porque parece que ninguém mais tem medo. Temos que aprender a lidar com isso de uma forma mais natural.